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Como tomar um tacacá

"O tacacá, toma-se? Bebe-se? Sorve-se? Saboreia-se? Não, o tacacá deseja-se, de repente, como se deseja uma mulher, como se deseja retornar ao amor da adolescência. O tacacá possui o toque agudo da saudade. A memória de seu sabor salgado e ar­dente assalta-nos sem aviso, em pleno dia, em determinadas horas de distração. [...] Desejo de tacacá. Porque, para tomá-lo, é preciso, antes de tudo, um ritual.
É preciso que seja ao anoitecer. Ainda não de todo noite completa; ainda não dia findo. Àquela hora semi-crepuscular, indecisa e feminina quando, por fim, o céu se envolve de um azul-cinzento intenso ou aquela chuva antes da saída da lua. 
É preciso que estejamos cansados, tão fatigados que nada nos afigure mais necessá­rio, naquele momento, do que tomar um tacacá. Nem o bate-papo informal com o amigo. Nem o café na Central. Nem o olhar à mulher que passa. Apenas, a pro­cura, a única procura por um tacacá, com pouca pimenta ou muita e bem quente.
Depois, é preciso que haja um banco. Tacacá toma-se sentado para que o corpo repouse e possa se entregar completamente ao prazer de saboreá-lo. Porque o tacacá é extremamente absorvente. Quando bem feito, o que ocorre pouco. Pois fazê-lo e tomá-lo é uma arte.
É preciso, também, que a noite desponte ao chegarmos junto ao carrinho de tacacá. E comece a chover, levemente. Faça algo de frio, algo de úmido. O que não é difícil em  lá em Belém. 
Depois, como estamos cansados e queremos esquecer, esperamos. Uma paciência longa e calma, até que a dona do tacacá termine por prepará-lo. De preferência que seja em Nazaré ou olhando a Igreja da Trindade.
É preciso que o tucupi seja leve, amarelo-canário e novo. Que a goma bóie no líquido, espalhada por acaso e se mostre apenas por alguns instantes; que não haja muita folha; que os três ou quatro camarões sejam médios, nem grandes demais ou minúsculo e somente uma parte deles apareça, a ligeira carne rósea a deixar-se entrever, adivinhar-se na cuia olorosa. 
Depois, é preciso que haja sal e pimenta de cheiro, mas não em demasia; o suficiente para nos queimar a alma nos primeiros goles e reanimar o corpo; então renascemos para a noite e a alegria novamente nos habita. O suficiente apenas para desvanecer seu fervor após esses primeiros goles e tornar-se depois, uma presença quente, já quase uma memória, na ponta da língua.
É preciso saber tomar o tacacá. Aos primeiros sorvos integralmente seu calor, sua salinidade, seu gosto de mar quente, de arbusto e molusco que os lábios experimen­tam fugidiamente. 
É preciso que o jambú e os camarões pousem lentamente no fundo da cuia e venham à boca, por si mesmos, sem o auxílio dos dedos. É necessário que não sejamos interrompidos. Apenas um aceno de cabeça aos conhecidos que passam. Um filtro mágico que se bebe em silêncio e solidão. Somente a comunicação imperceptível com a tacacazeira: feiticeira moderna numa terra onde as lendas ainda sobrevivem em um mundo que se materializa inexoravelmente.
Chegados ao fim do tacacá, é preciso que o mesmo ainda se conserve morno, assim como o fim de um amor. Jamais frio. Não existe nada pior do que um tacacá frio. É como champanhe sem gelo. Neste momento tomaremos contacto real com as grandes porções maternais de goma penetradas pelo tucupi e pela amargura das folhas. Há sempre um gato gordíssimo perto do carro de uma tacacazeira. Ele comerá, displicentemente, as cascas de camarão que atirarmos ao chão. A cuia está vazia.
Agora, o mais importante: jamais repetir o tacacá, na mesma noite. A segunda cuia nunca devolverá o sabor da primeira. O primeiro tacacá daquele dia é único, autêntico, original, insubstituível como o gosto do primeiro beijo. Como a primeira entrega de amor. Porque os tecidos de nosso cansaço e de nossos desejos são satis­feitos. Porque foi necessário todo um dia infrutífero e todo um sol de toda uma chuva para alcançá-la. Todo o equívoco das relações humanas, toda a falta de solidariedade, de cortesia, de amizade e de comunicação com os outros. A decep­ção será fatal se arriscarmos um segundo, fiéis à gula. É preciso permitir-se um resto de fome, um resto de desejo para o dia seguinte, um resto de tristeza intransferível. Quando a baía abrir suas margens de musgo para recolher as asas do dia; quando a lua surgir em seu halo de chuva; quando chegarmos ao fim de nossas tarefas cotidianas, então, novamente, sentiremos na ponta da língua a subtaneidade acre do tucupi.


Um comentário

Elane Cardoso disse...

Simplesmente lindo! Texto poeticamente fantástico! Aqui eu deixo registrada a emoção de uma Paraense apaixonada!